Diários Noturnos

Diários Noturnos

23 de abril de 2015

Quando as vogais se mudam de casa

Entre o luxo e o lixo, duas vogais se mudam de suas casas. Em São Paulo, travestir-se de pano de chão é apenas uma questão de se esquecer para onde vai e por qual motivo veio.
Estou com a sensação de que tenho passado os dias amortecida, meio esvaziada. Tudo que me prometo, não cumpro. Chego atrasada no trabalho, não ponho as roupas para lavar, não arrumo o meu quarto, não envio currículo para sair desse estado de copo vazio que está cheio de ar, não vou à consulta marcada há um mês, não vejo os amigos de longa data, não percebo o amanhã chegar e ele está aqui, em presença, depois de ontens irracionais e contemplativos passados amarrotadamente. Parece-me que estou fora do mundo. Saí de cena. De todas: do facebook, das aulas da universidade, das salas de cinema, da minha casa. Ontem, quando chegou à pizza, eu coloquei a minha bolsa no ombro e esperei Tino, amigo que veio me visitar em casa, pegar a chave. Mas sou eu quem mora ali e: cadê minha chave?

Deslocada,
descompassada.
Fora de ritmo.
Nenhuma trilha sonora alcança
a distância que estou de tudo.
Eu tirei as cores da cidade. 
Não me sinto deprimida, me sinto opaca. Se alguém gritasse sobre um vulcão que resolveu entrar em erupção na esquina mais próxima, ficaria plantada onde quer que eu estivesse. Eu só sirvo para ser poema, não sirvo para ser jornalista nem garçonete, nem amiga, nem namorada, nem irmã, nem filha. Talvez para ser mãe, além de poema. Eu e os meus mil cuidados. Choro quieta pensando no que está por vir.
Andando pelo centro por volta da metade desse dia nublado, entre as danças dos que guardam a chuva, fiz a frase: “Hoje eu vou cair em mim”. Repeti algumas vezes para decorar no corpo. Eu tenho mil planos que não saem da planície das listas que faço sempre que encontro um papel.
Releio repetidas vezes o que escrevi até aqui para ver se alguma palavra pesca a minha inspiração. Não estou sabendo falar de nada mais afora descrições de como ando passando os dias. Podia parar de escrever porque não tenho assunto. Contudo, tenho a impressão de que a escrita pode me contar sobre algo que não esteja no terreno que habito, de que pela escrita eu possa atravessar daqui para outro lugar. Acredito que escrever tenha esse poder que física nenhuma traz para a experiência. Ou escrever é físico?
Quem escreve vive duplicadamente. Por exemplo, eu estou sentada como hostess em um restaurante, apoiada sobre uma mesa alta de ferro reluzente. A cadeira é feita de madeira maciça; quando sentada nela, a altura dos meus peitos fica na direção da mesa. O meu trabalho é receber os clientes que chegam, acompanhando-os até o piso do restaurante, e servir os que escolhem se sentar na área externa, apelidada “café”. A mesa alta de ferro está posicionada na porta de entrada do restaurante e eu estou atrás dela. Faz pelo menos meia hora que ninguém entra e não há alma viva alguma no café. Enquanto nada acontece, estou a escrever os meus pensamentos. 
Se eu não estivesse registrando as ideias que agora me ocupam, amenizando o tédio contemplativo, o dia passaria de uma vez só e seria mais fácil esquecer que ele existiu. Todavia, estou soletrando o avanço das horas passando por mim. Isso que faço é comometaviver metalinguisticamente. E sabe o que é pior? Acho que já escrevi conteúdo semelhante a esse que estou escrevendo. Se eu quiser, faço desse relato de diário um conto literário. É só eu me mudar de casa: da primeira para a segunda pessoa do singular. Do lixo que é perder horas por estar perdida ao luxo de ser personagem eternizada em formato literário.

Quando a primeira pessoa vira uma segunda do singular


Veio à Alberta a ideia, de repente, de que entre o lixo e o luxo ocorre apenas a mudança de duas vogais de suas casas. Depois de tal constatação, ela pensou que São Paulo a fez se travestir de pano de chão quando passou a se esquecer, aos poucos, para onde estivera indo e por qual motivo viera parar nessa cidade. Alberta estava com a sensação de que vinha passando os dias inteiramente amortecida, meio esvaziada. Tudo o que prometia a si mesma, não cumpria. 
Estava chegando atrasada todos os dias no trabalho, não andava colocando suas roupas para lavar nem arrumando seu quarto, cada dia inventava uma desculpa para deixar para o amanhã impossível o envio de seu currículo para novas oportunidades de ser-estar (de ser star), acumulando o sentimento de que o copo vazio está cheio de ar. Alberta, hoje cedo, não foi à sessão que havia sido marcada há um mês com a psiquiatra e já faz bem dois meses que não vê nem conversa com seus amigos de longa data. Ela não está percebendo que o hoje que está vivendo é o amanhã que já chegou. Está colecionando ontens irracionais e contemplativos, que passam amarrotadamente pelos calendários. 
Alberta está fora do mundo, saiu de todas as cenas: do facebook, das aulas na PUC, das salas de cinema e, quando está em casa, é como se não estivesse.
Ontem, quando chegou a pizza, pós-roda de maconha entre conhecidos e desconhecidos, ela colocou a bolsa no ombro e esperou Bruno, seu amigo que viera lhe fazer uma visita, pegar a chave. Mas ela é quem está morando ali e, obviamente, é quem tinha que abrir a porta.

Descompassadamente fora do ritmo,
rodopiando em volta de si mesma.
Tão distanciada de sua ventura
que não se escuta nem se lembra
de que um dia gostava de ouvir
Los Hermanos.
Alberta tingiu de sépia sem contraste
as cores da cidade, como
se a vida que chega aos olhos
pudesse ser um instagram.

Ela não se sentia deprimida, sentia-se opaca. Se uma cratera se abrisse embaixo de seus pés, andando rua a fora, apenas se lamentaria de não ter asas para voar e fugir de uma morte acidental. 
Alberta às vezes sente que só serve para ser um poema. Não está para ser psicóloga nem garçonete, nem namorada, nem amiga, nem irmã, nem filha. Ela minimamente confia na ideia de que um dia servirá para ser mãe, com sua vocação à sensibilidade e suas manias de cuidado à moda antiga. Ao pensar nisso, em ser mãe, toda ela se lacrimeja de emoção, fantasiando o cenário do futuro que pode chegar a qualquer dia.
Quando ela estava a caminho do trabalho, já com dívidas contadas pelos ponteiros do relógio, acelerando os passos pelo centro da cidade por volta da metade do dia nublado, equilibrando-se com o guarda-chuva numa mão, a bolsa na outra, escapou-lhe a frase em voz alta: “Hoje eu vou cair em mim”. Não entendeu o que isso poderia significar, mas repetiu para si mesma a frase, como se fosse um mantra.
Ela tinha mil planos que acabavam não saindo das inúmeras listas que escrevia à mão. Alberta tinha mania de escrever porque se preocupava muito com o alcance de cada palavra. Hoje, no restaurante, quando o movimento de clientes ficou fraco ou nulo, quando passou a não ventar sequer um fio de seu cabelo, Alberta se acomodou na mesa alta de ferro reluzente para escrever. Não tinha muito o que dizer, todavia, ficou fotografando com palavras a sua existência no espaço-tempo. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quem (sol) eu:

Minha foto
'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

Seguidores