Diários Noturnos

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19 de outubro de 2014

Interlúdio de Mim e Eu

Não sem o conhecimento do pouco esforço das minhas pernas atemporais, mas eu tive que me por a descer a escada para encontrar a agulha do passado. A luta por esta agulha que me alfineta os olhos só para eu poder chorar a vida fora o meu décimo terceiro trabalho de Hércules.

Ou o primeiro botão da minha camisa não servia à sua casa ou passou a servir demais e se viu escravo em treze de maio de mil oitocentos e oito. A liberdade do primeiro botão da minha camisa e o meu navio negreiro aprisionado. O botão, antes dentro de sua casa, escondera as duas maiores das minhas cicatrizes. Porém, a âncora negra de meu navio lançara a minha exposição. A exposição que me sustentara ao próximo passo freado. 

Sinfonia nº 5, primeiro movimento, e eu estacionada num degrau da escada: o tempo, em uma de suas faces, mostrava a eternidade da subida ao tombar a cabeça para trás e, em outra face, indicava a solução plausível para a minha busca na cauda de meu dorso e continuação de mim: a descida.

A agulha do passado que eu não vejo, somente sinto e choro, era necessária em minhas mãos pouco hábeis e feitas para não costurar, apalpar, alcançar. Era preciso que eu tivesse em minhas mãos, meretrizes de cicatrizes, a agulha; viver não é preciso. Deixei tombar a cabeça até ultrapassar o pescoço e a direção vertical dos meus calcanhares (de Aquiles), perdendo o equilíbrio e seguindo o peso da âncora. Caindo. Eu me caindo escada a fora.

Conspirei com todo o meu poder de ser me constituindo: inventei um alguém que era eu. Senti repulsa daquele pífio que era genuíno de meus enganos, monstro engrandecido de minha aparência e que tinha outro corpo, embora outro da mesma carne. E que tinha outro corpo: a mitologia manifestada. Quis outro tamanho de mãos, outras dores, outra vida e fugi. Tentei fugir: desloquei de modo louco as minhas pernas atemporais do pouco esforço das minhas pernas. A sombra de mim me ultrapassava e comia a minha sombra. Eu corria em volta da mesa de vidro de doze lugares – doze espaços no tempo: trezentos e sessenta e cinco dias –, eu corria em volta da mesa de vidro e eu quase me alcançando. 

Eu quase me alcançando, correndo janeiro, março, maio, julho, agosto, outubro, dezembro e eu corria sabendo que a minha coragem era a de não olhar para mim para desconhecer para sempre a distância que existia entre mim e eu. Correndo fevereiro, abril, junho, setembro, novembro e do canto do meu olho esquerdo – feito esquina de labirinto – eu vi que eu me vi sentindo já a vitória da minha derrota de mim e eu ser um desacompanhado ser em carne. Então, o grande momento: eu entrei em mim e fui me transformando em eu. Eu em mim tomando a mesa e estraçalhando o vidro em cacos minúsculos por toda a parte; eu em mim ocupando os doze lugares da mesa desconfigurada. Cinco e sessenta e trezentos cacos de vidro. 

A vingança da organização da solidão, eu era enfim um ser desacompanhado em carne, cravou-me o tórax fazendo-me dois, para sempre: dois cacos de vidro fizeram morada forçada no meu peito que jorrava sangue para expelir os cacos que ali se fincaram.

No meu tórax, em simetria horizontal – por fingida indulgência ao meu sangue fraco –, dois pedaços afiados de vidro mantiveram morada e terminaram por inchar a minha carne em dois tamanhos análogos, que apodreceram rígidos e com uma quantia de sangue coagulado nas pontas de suas superfícies. Os bicos de cada uma destas carnes inchadas tornaram-se as minhas maiores cicatrizes.

Petulância da âncora que me avisou o fim da queda ao quebrar as minhas pernas pelo impacto, meu dorso em dor e as minhas pernas marcadas pelo tempo. Tudo é temporal. O tempo havia me sido dado e encontrei a agulha do passado no meu primeiro nascimento. Para evitar o décimo quarto trabalho, não procurei botão na minha pré-morte de mim e eu muito menos pregá-lo-ia à camisa se enfim o encontrasse na desordem dos vidros espalhados. Assim, para evitar o décimo quarto trabalho, costurei os tecidos de cada lado da camisa, libertando-me da exposição.

A escada me fizera temer a volta. Recordei, contudo, a dimensão das minhas mãos e tombei a cabeça para trás como se antecipasse um enfrentamento à subida. Tudo é temporal exceto a escada que é o próprio tempo. Quero a minha vida, a minha morte e, ainda, a minha pós-morte. E subi. Subi com as mãos e com a agulha do passado me alfinetando os olhos só para eu poder chorar a vida.

Conto originalmente escrito e publicado em 2007. Editado por mim mesma neste 2014.


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