Diários Noturnos

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1 de maio de 2010

Homem Cinza

Arrancou o cabide de modo drástico. Notando não ser aquele o terno adequado para caber no dia cinza outonal, rapidamente o lançou ao ar (virou tapete de chão). Dedilhou no armário uma camisa xadrez, outra listrada em azul marinho, a calça de linho - presente de algum parente inoportuno em alguma comemoração natalina na casa de sua madrasta -, um blazer mostarda de veludo, outro preto modelo caban. "É este", balbuciou para si. Enfiou com violência o braço esquerdo e pendurada a manga direita sobre as costas, seguiu eufórico em direção à cozinha. Chaleira, torneira, água até à boca, fósforo, gás, pronto. Voltou ao quarto e estancou em pose interrogatória: "O que vim fazer aqui?". O olhar a esmo alcançou longe o maço de cigarros em cima das páginas abertas de Faulkner e tratou logo de apanhá-lo. Procurou o bolso do blazer, encontrou a pele do abdômen. Apoiou o maço no móvel ao lado, despiu a manga esquerda, lançou o modelo caban ao ar (outro tapete de chão). Abriu qualquer gaveta, pegou qualquer malha. Então cobriu a pele com uma malha branca de gola esgarçada, abaixou-se e, na sua desatenção, a mão segurou o terno não escolhido. Vestiu-se sem se ater em ajeitar a gola atrás do pescoço. Estancou novamente. Para pôr em ordem o rebuliço de ideias, levou um bastonete aos lábios, tirou do bolso do jeans a caixa de fósforo e o acendeu. Guardou o resto dos cigarros junto aos fósforos na algibeira do terno não escolhido. Procurou no ar dos pulmões algum esclarecimento para todo aquele emanharado de sentimentos que o assaltava o âmago, demorando-se na respiração. Sentiu-se cansado. Teve vontade de chorar. "Não tenho tempo para isso, o cinza do dia se metamorfoseará em escuridão na próxima dança do relógio". Num súbito espasmo, correu até o fim do corredor. Noutra rapidez de instantes, sentiu o estrondo da porta fechando atrás de si.

Eis um homem avançando calmamente as ruas, casando perfeitamente a sua alma no breu de um fim de tarde. Ao contornar uma das esquinas, estancou outra vez: "Merda! Esqueci a chaleira no fogão. Preciso voltar".

Amaldiçoou a escuridão do dia por não perceber que há tempos já era noite dentro do terno não escolhido. Como se fugindo do teto dos céus, avançou feito criança medrosa para dentro de casa. Embora não tenha simbolizado a velha angústia, o homem pôs-se a chorar assim que a porta novamente bateu violenta atrás de si. Caindo o corpo no piso da cozinha (virou tapete de chão), soluçou:
"Desisto ----- de ------
------------------ mim".

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'O ar está tão carregado de espíritos que não sabemos como lhes escapar.'(Goethe in Fausto)

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