Diários Noturnos

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3 de maio de 2010

P.R. & o amor por sua M.C.S.


Durante todo o percurso a pé, P.R. iludiu a sua ânsia pelos cigarros. Havia fumado todos os cinco maços para uso emergencial guardados no porta-luva do carro. P.R. acreditava fielmente que se não fossem os cigarros a morte não lhe teria escapado em tantos sufocos existenciais. Não era um daqueles superticiosos de bar, com rostos inchados & avermelhados, barriga de barril e com todas as epopéias vitais na ponta da língua; era verdade que tinha sim o rosto inchado & avermelhado e uma barriga de barril, contudo, por ser um homem de mente enciclopédica - podia se atrever a discorrer sobre qualquer que fosse o assunto com um poder de construção de pensamento impecável -, era também um homem sem epopéia vital na ponta da língua.

Mantinha o traseiro de quem lhe dava atenção por horas a fio quando recordava as datas e os datalhes dos marcos históricos ou quando recitava Cervantes. Fazia tudo isso movendo as mãos sem cigarros italianamente tamanho o entusiasmo que sentia por saber montar os pormenores da humanidade de cabo a rabo. Todavia, na presença física, na presença iminente ou mesmo na presença psicológica - feito alucinação ou apenas recordação & lembrança - de sua M.C.S., as mãos tremiam em desespero: como se chorassem a dimensão do cigarro para cobrir algum dos vãos entre os dedos, de modo que assim, com os cigarros, as mãos voltassem a atingir o equilíbrio necessário e o pensamento voltasse àquela razão impecável.

A coragem de P.R. surpreendeu a ele próprio. Já era muito o fato de ter decidido atravessar uma estrada que durava três horas e vinte e dois minutos se a 120km por cada sessenta minutos somente para ter qualquer coisa de sua M.C.S. Esse qualquer coisa de M.C.S. que o fez comer os cinco maços de cigarro durante os treze infinitos que couberam dentro do tempo da viagem de carro.

P.R. iludiu a sua ânsia pelos cigarros durante todo o percurso a pé até a casa de sua M.C.S. Sentia como se guerreando sem escudo com a Morte. Era um balançar desengonçado de mãos, um sem propósito de pernas, uma vertigem vinda da pressa sanguínea dentro de seu corpo que se sentiu Dom Quixote. Em voz alta, começou a recitar Cervantes. As suas mãos aos poucos foram ganhando a vivacidade da razão, movendo-se italianamente. Bradava expansivo, com uma forte entonação quando numa rima chegou Dulcinéia. Auto-sabotagem: P.R. era um Dom Quixote na mais solitária das solidões sem a presença dos seus cigarros Sancho-Panças.

Com a prudência enfraquecida, avançando a vida em desequilíbrios físico & psíquico e, inclusive, com a visão turva & a boca num deserto, P.R. esperava sua M.C.S. atender a campanhia. Mais trezes infinitos suportados impacientemente. Mas toda a duração dessa agonia universal desapareceram assim que o rosto de M.C.S. invadiu a paisagem da janela da frente. E numa altivez desconhecida, a garganta fez a frase:

--- M.C.S., minha Dulcinéia feita de amor, destrua todos os moinhos de vento para que cigarro nenhum se apague.


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